quarta-feira, abril 09, 2014

Raio-X da impenetrável gestão da Junta de Freguesia do Torrão

 Manda o Código de Contratos Públicos que os organismos na dependência directa ou indirecta do Estado revelem no portal da internet (http://www.base.gov.pt) os seus gastos. Ora a grande maioria, e muitas são as queixas que vão nesse sentido, omite deliberadamente ou habilidosamente os números, não cumpre a lei e recusam-se pura e simplesmente a exercer uma gestão que se deveria querer transparente e ao alcance dos cidadãos.
A reportagem da SIC que passou na última Segunda-feira aborda justamente esse tema e, de acordo com o Jornal I, são milhares as entidades que não cumprem as disposições legais.
Ora entre essas entidades está a «nossa» Junta de Freguesia do Torrão, como não podia deixar de ser. Na verdade, e fazendo uma pesquisa exaustiva constata-se que não há um único registo seu no referido portal. A junta do Torrão recorre essencialmente e, podemos mesmo afirmar, unicamente, ao chamado contrato por ajuste directo (modalidade não vista com muito bons olhos por instituições nacionais e internacionais que lutam pela transparência da administração pública e contra a corrupção) e acontece que aparentemente as verbas consignadas não ultrapassam nunca os 5.000 euros e sendo assim, está a autarquia dispensada de publicar os seus contratos no referido portal. Essa é a justificação oficial. Mas vamos analisar em profundidade esta matéria. Vamos consultar o Decreto-Lei nº18/2008, de 29 de Janeiro, que aprova o Código dos Contratos Públicos (CCP), nomeadamente os artigos 127º e 128º e mais importante ainda, tentar distinguir entre a letra da lei e a interpretação da mesma, que são conceitos diferentes.
Ora o nº1 do artigo 127º afirma explicitamente que "a celebração de quaisquer contratos na sequência de ajuste directo deve ser publicitada, pela entidade adjudicante, no portal da Internet dedicado aos contratos públicos". Mas se analisarmos o artigo seguinte veremos que de facto no seu nº3 "o procedimento de ajuste directo regulado na presente secção (Secção III) está dispensado de quaisquer outras formalidades previstas no presente Código, incluindo as relativas à celebração do contrato e à publicitação prevista no artigo anterior". Ora um dos procedimentos regulados é justamente o facto de se "se tratar de ajuste directo para a formação de um contrato de aquisição ou locação de bens móveis ou de aquisição de serviços cujo preço contratual não seja superior a €5000, a adjudicação pode ser feita pelo órgão competente para a decisão de contratar, directamente sobre uma factura ou um documento equivalente apresentado pela entidade convidada". De onde se conclui portanto que até aqui tudo bem - e já nem vamos pôr a hipótese de se partir um contrato em dois se o valor consignado for superior a 5.000 euros para evitar a sua publicação online. Por exemplo uma qualquer construção cujo valor orçamentado seja 5.500€, fazer-se um concurso por ajuste directo para a construção cujo valor seria por exemplo 4.000€ e depois celebrar outro unica e exclusivamente para a pintura e limpeza, cujo valor seria de 1.500 euros e assim se escaparia à obrigatoriedade de publicar online. Não sabemos se tal foi feito ou sequer se é possivel fazer nem é essa a questão. O que é facto é que não existe no portal um único contrato por ajuste directo cuja entidade adjudicante seja a Junta de Freguesia do Torrão, ponto final parágrafo. 
Mas seja como for, e como se disse, tudo certo, tudo em conformidade. Quanto a isso não há a mínima dúvida. Então qual é o problema?
O problema é que a habilidade e a «chico-espertice» é que fazem escola e a procura de subterfúgios para contornar os processos que visem uma maior transparência da gestão pública é política sempre presente. Ora vamos lá tentar interpretar o texto legislativo. O que está estipulado é o seguinte: todos os contratos públicos celebrados por ajuste directo cuja verba consignada seja superior a 5.000 euros têm que ser obrigatoriamente publicados no portal BASE. Porém, daqui se deduz que tal não implica que o contrário seja proibido. Uma coisa não implica a outra. A lei não diz que não se pode publicitar online contratos dessa natureza de valor igual ou inferior aos cinco milhares de euros. O que está implícito, o que se pode deduzir, a interpretação que tem imperiosamente que ser feita é que para contratos celebrados por ajuste directo cujo valor consignado seja igual ou inferior a 5.000 euros é que a publicação desses contratos no BASE é facultativa, é optativa. Pode ser publicitada ou não de acordo com a vontade da entidade adjudicante. Ora, claro, como pouco amigos, desde sempre, de uma política séria de transparência, a Junta de Freguesia do Torrão opta pelo caminho evidente e furta-se a publicar online os seus contratos por ajuste directo cujo montante consignado convenientemente nunca passa da fasquia dos cinco milhares de euros.
Poder-se-á dizer que não é assim, que só são publicitados contratos de valor superior a esse montante. Será? Bem, basta dar uma voltinha aqui para se perceber imediatamente que não é assim. Há inclusive organismos que optam por publicitar  no BASE até valores de poucas centenas de euros. 
Diz o povo que nem oito nem oitenta. Lógicamente que não defendemos que seja publicitada a compra de papel higiénico, por exemplo, ou de contratos de valor irrisório mas convenhamos, contratos relativamente à aquisição de publicidade ou outros de valor já considerável ainda que não superior a cinco mil euros porque não? Porque não? Fica a pergunta e terminamos aqui a questão relativamente à publicitação de contratos online.



Já constatamos no passado e é ponto assente que no que toca a uma gestão transparente, a Junta de Freguesia do Torrão resiste o mais que pode e a sua gestão se não é assunto tabú é no mínimo obscura e impenetrável e se quanto a contratos online nem um existe já quanto à publicitação do seu orçamento e conta de gestão no seu site, o cenário não é diferente; Zero. Na verdade, já aqui abordamos essa matéria mais do que uma vez e temos bem presente que durante a última campanha eleitoral uma das acusações feitas pela oposição ao executivo socialista era justamente o facto deste esconder as contas e a gestão da autarquia e a promessa de que as contas seriam públicas e transparentes. Ora a gestão política entretanto mudou, o orçamento da Junta de Freguesia para o ano de 2014 foi votado e aprovado no passado mês de Dezembro, passaram entretanto quatro meses e até à data de hoje não há qualquer publicação do mesmo sendo que já neste Sábado vai ser proposta a primeira alteração ao documento sem que os torranenses conheçam sequer a versão original. Ora até por isso mesmo, o timing escolhido para este artigo é mais que acertado.
Será concebível, será aceitável que continue vedado aos cidadãos o acesso, o conhecimento à gestão e às contas públicas?
Ora qualquer pessoa pode conhecer o orçamento do Estado, este orçamento concretamamente. Não pode? Pode. Ei-lo aqui.
Poder-se-á afirmar que isso é válido para o orçamento do Estado. Certo, mas não é válido para as autarquias locais? Não devem elas também publicar os seus documentos previsionais e gestionários? Podem e devem, dizemos nós. E dizemos mais: algumas publicam. E uma delas é justamente a Câmara Municipal de Alcácer do Sal. Estão aqui, de vários anos, prontos a serem consultados.
Mas ainda assim, poderá eventualmente haver, quem sabe, alguém que possa dizer que sim senhor mas que isso se pode verificar no caso das câmaras mas das juntas de freguesia...
O que é que tem? As juntas de freguesia também são órgãos de poder local e são ainda mais próximos do cidadão, ora por maioria de razão não só podem como o devem fazer. E algumas fazem-no, basta consultar alguns sites online. E imaginam os torranenses quem o faz aqui bem próximo? A vizinha freguesia de Vila Nova da Baronia! Está lá tudo descriminado; orçamentos, contas de gerência... e de vários anos e quem porventura não acreditar só tem que clicar aqui.
Já no que toca à Junta de Freguesia do Torrão, até à data desta publicação, o que existe é isto:

Bem, e quem não acreditar clique aqui e veja com os seus próprios olhos.
Há cerca de oito anos que a junta do Torrão tem o seu site online e no que toca a esta matéria, o cenário é imutávelmente o mesmo; «brevemente disponível». O «brevemente» neste caso é quase uma década e o seu término indeterminado e quanto a isso não serão precisas mais palavras.


Ora aqui no Pedra no Chinelo, valores como a transparência, competência e seriedade política bem como participação na vida pública e cidadania activa, entre outros, são valores inalienáveis e portanto, e como tivemos acesso ao orçamento da referida autarquia para este ano vamos aqui e agora, e a escassos três dias de vir a sofrer a primeira alteração, partilhar as linhas mestras e analisar mais aturadamente alguns pontos da versão original. A publicação na íntegra deixamos para quem de direito se considerar depois deste artigo que o deve fazer. Não se pretende com este trabalho embaraçar ou humilhar nem politicamente nem publicamente pois seria no mínimo humilhante e degradante ter que ser um órgão de comunicação online a ter que o fazer ao invés de quem de direito.
Ora portanto, o orçamento da Junta de Freguesia do Torrão não pode continuar a ser «top secret», ou confidencial onde só alguns têm acesso e a generalidade dos torranenses não, tal como exemplificamos em jeito de brincadeira, sem ter o objectivo de zombar e espero que nos perdoem a ousadia, pegando na capa do documento e criando a imagem abaixo para mostrar que parece que é isso que este documento é por estas bandas: um documento classificado, um segredo de Estado.



 Posto isto, vamos lá analisar alguns pontos.
A Junta de Freguesia do Torrão prevê gerir no ano de 2014 um orçamento da ordem dos 213.453,00€ sendo que 99,98% são provenientes de receita corrente donde 73,9% desta provém do Estado central através de um fundo denominado Fundo de Financiamento de Freguesias, valor que equivale a 157.719 euros. A Câmara Municipal é a segunda entidade que contribui para os cofres da autarquia torranense. Embora outros valores estejam previstos, a parte de leão da verba provém do estabelecimento de um protocolo o qual garante 45.290 euros o qual pesa 21,2% na receita corrente. Apenas 2,5% da receita corrente são provenientes de impostos directos (IMI). Os restantes dois e meio pontos percentuais são provenientes essencialmente de receitas próprias tais como licenciamento de canídeos, taxas e licenças de mercados e feira e de taxas de serviços cemiteriais.

O orçamento da despesa da Junta de Freguesia do Torrão divide-se em quatro grandes áreas ou classificações económicas principais:

01 - Órgãos da Autarquia
02 - Serviços Administrativos
03 - Serviços Urbanos
04 - Educação, Cultura, Desporto e Acção Social

Cada uma destas áreas subdivide-se depois em duas áreas: despesa corrente e despesa de capital. Estas por sua vez dividem-se em pequenas áreas denominadas rubricas nas quais está inscrito um valor que se prevê gastar. Por exemplo, combustíveis, ordenados com o pessoal, Feira de Agosto, Comemorações do 25 de Abril e 1º de Maio, aquisição de material informático, electricidade, etc.
 Das quatro, a área que mais pesa em termos de despesa é a área da Educação, Cultura, Desporto e Acção Social, que representa quase metade da despesa total, mais concretamente 47,7% o que equivale a uma verba de 101.860 euros.
Nesta área a despesa corrente pesa 95,9%. Entre alguns valores podemos por exemplo verificar que para a Feira de Agosto está prevista uma verba de 19 mil euros (19,5% da despesa corrente desta classificação e 8,9% da despesa total), para as comemorações do 25 de Abril estão previstos 6.500 euros, distribuidos por duas rubricas (3.000 e 3.500 euros).
Logo a seguir, são os Serviços Administrativos os quais pesam no orçamento de despesa 25,9% dos quais 70,5% da despesa corrente (18% da despesa total) é dispendido directamente com o pessoal em funções com excepção dos funcionários do cemitério. Apenas 1,4% da despesa desta classificação e despesa de capital.
Com os Seviços Urbanos está previsto um gasto total de 32.207 euros (15,1% da despesa total), dos quais 85,7% correspondem a despesas correntes.
Por fim, os gastos com os Órgãos da Autarquia representam apenas 11,3% da despesa total. Também aqui a despesa corrente tem um peso de 96,9%. É desta classificação que entre outras despesas, saem os vencimentos dos membros do executivo e da assembleia de freguesia (62,8% da despesa corrente desta classificação e 6,9% da despesa total), o pagamento da quota da ANAFRE (Associação Nacional de Freguesias) e o pagamento do IMI do extinto Torino Torranense (250 euros).



Posto isto, o orçamento é apenas uma previsão daí chamar-se um documento previsional e, como tal, é susceptível de vir a sofrer alterações imprevistas. Um documento previsional é tanto melhor quanto menos forem as alterações sofridas ao longo do tempo para o qual está feita a planificação e quanto mais rigoroso for o controlo e execução do mesmo.  
Assim sendo, tão importante como um orçamento bem elaborado é aquilo que se chama controlo e execução orçamental, isto é, de nada serve ter um documento bem elaborado, com uma margem de precisão muito boa, se depois este não é cumprido criteriosamente.
Para se perceber melhor a lógica, vamos imaginar o total da verba de que dispomos como se fosse, por exmplo, meio litro de feijão e temos que o dividir de determinada forma por vários recipientes. Uma rubrica é como se fosse um recipiente. Existem tanto do lado da receita como do lado da despesa. Não temos que receber a quantia toda da mesma origem.
 Ora por um lado, pode acontecer que haja uma alteração da receita, isto é, estarmos a prever que temos meio litro de feijão para gerir ou para distribuir como quisermos pelos nossos recipientes e só recebermos 400 gramas como também pode acontecer que podemos vir a ter mais para gerir, por exemplo 700 gramas. Isso é uma alteração de receita. 
Geralmente as alterações aos orçamentos verificam-se do lado da despesa. Mas de que forma? Quer dizer que se vai gastar mais? Não necessariamente. Não se pode (ou não se deve) gastar mais do que aquilo que se tem, isto é, a despesa não deve ser maior do que a receita e no limite ambas devem ser iguais. Em termos de previsão orçamental, geralmente a receita é igual à despesa. O problema está na falta de controlo orçamental. É este por exemplo o problema das contas públicas portuguesas. Quantas vezes não ouvimos falar nas notícias em descontrolo ou descalabro orçamental? Quando as despesas são superiores às receitas temos aquilo que se denomina um desequilibrio orçamental. Certamente que todos já ouvimos falar disso.
Felizmente a Junta de Freguesia do Torrão não padece desses males. 
Então mas como é que pode haver alterações? Bem, no caso concreto, não há despesas a mais. O que se passa, e recorrendo mais uma vez ao exemplo dos feijões, é que queremos mudar alguns deles de frasco porque um dos recipientes tem menos do que aqueles que afinal vão ser precisos. Então vamos a outro frasco onde prevemos que podemos retirá-los dali sem consequências e colocámo-los onde estão em falta. Isto também é uma alteração ao orçamento de despesa. O valor total mantém-se, o orçamento não «rebentou», o que houve foi apenas alguns ajustes internos, algumas tocas e ajustes entre rubricas. Chama-se a esse caso concreto um reajuste orçamental.
Portanto, resumindo, as alterações orçamentais podem dever-se a diversos factores não previstos que não necessariamente falta de controlo ou má execução orçamental o que leva a que possam ter que ser feitos ajustes locais e concretos. Ora qualquer alteração a ser feita necessita sempre da aprovação do órgão executivo em primeiro lugar mas precisa depois da aprovação do órgão deliberativo, daí as alterações terem que ir, no caso das freguesias, à Assembleia de Freguesia para poderem ser ractificadas, isto é, para poderem entrar em vigor. Se esse órgão chumbar uma qualquer alteração ao orçamento, esta não pode ter lugar e a gestão teria que se reger pelo mesmo orçamento.

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